terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O muito pequeno e o muito grande

Aqui há anos, no Hotel Crown Plaza, em Santiago do Chile, na véspera da partida para a visita à Ilha da Páscoa, um companheiro de viagem disparou, a propósito do preço demasiado elevado que pagara pelo jantar -"Há vidas mais baratas, mas não são tão boas!" Dito com o sotaque alentejano dele, provocou bastas gargalhadas entre aqueles que, como eu, tinham encontrado restaurantes mais em conta.
Para que os leitores possam entender melhor a frase supracitada e o que ela subentende em termos de muito pequeno e muito grande, resolvi traduzir uma peça do jornal francês Libération, o grande concorrente do Le Monde:

A festa em grande da sociedade gestora dos aeroportos de Paris, para tentar cativar turistas estrangeiros de gama muito alta


"Uma das aerogares do aeroporto de Paris - Roissy- Charles De Gaulle vai ser privatizada transitoriamente, para acolher uma centena de VIP num jantar de gala. A operação exaspera os serviços de polícia e da alfândega, que têm de velar pela segurança dessa gente importante e depois "descontaminar" as instalações.



A ementa não tem nada a ver com aquelas refeições de tabuleiro, usualmente servidas na classe económica. Foie gras com manga como entrada, à maneira de Guy Martin, du Grand Véfour, [um restaurante estrelado no Michelin], prato principal preparado pelo chefe multi-estrelado Thierry Marx, seguido de sobremesa de framboesas, criada pelo pelo pasteleiro-estrela Julien Alvarez.

No próximo dia 25 de Fevereiro, uma centena de happy fews, vindos da Ásia, do Médio Oriente e dos Estados Unidos vão saborear tais delícias na Porta M, do Satélite S3, da Aerogare 2E, do Aeroporto Charles de Gaulle [cerca de 40 quilómetros a nordeste de Paris intramuros].Vão também assistir a uma espectáculo conduzido por artistas da Ópera de Paris e participar numa degustação de vinhos de alta qualidade.
O convite foi feito pela ADP - Aéroports de Paris, a sociedade que gere as plataformas aeroportuárias de Orly, Le Bourget e Roissy - Charles De Gaule. O objectivo é redourar o brazão do destino França, um pouco embaciado desde há algum tempo, devido aos atentados. "Lançámos estes convites para que estes turistas de alto potencial difundam um imagem positiva. Estamos em concurrência frontal com Londres, favorecida pela taxa de câmbio libra-euro", esclareceu Laure Baume, directora-geral adjunta da ADP. Em princípio, portanto, uma banal e onerosa operação de comunicação.

Terminal 2E do Aeroporto de Roissy-Charles De Gaulle

Uma coisa em grande, mesmo grande

Só que desta vez, a autêntica potência que convida, viu grande e muito complicado. A tal ponto que exaspera tanto a polícia das fronteiras como a alfândega e até o prefeito [equivalente a governador civil] encarregado da segurança de Roissy. Em pleno plano Vigipirate, as forças da ordem não gostaram muito de ter de mobilizar efectivos suplementares para um evento de qualidade, classificado como "muito espaventoso" por um alto funcionário colocado no aeroporto.
De resto, pela primeira vez, o governo indicou que, ao contrário do habitual, a segurança deste evento não será gratuita. Está já a ser preparada uma factura, que vai ser apresentada à ADP. "Um aeroporto serve para acolher passageiros, não para organizar este tipo de manifestações. Por este caminho, porque não um desfile de moda, um dia destes?" opinou zangado um dos intervenientes que conhece o processo.
Na mesma linha, foi lembrado por escrito à ADP que tal tipo de evento não podia de modo algum ser financiado pela taxa de segurança, aplicada a cada bilhete de avião. Segundo consta, a autorização para esta festa chique foi dada a título excepcional e único. Uma maneira elegante de levar a ADP, mas igualmente algumas marcas de luxo, tentadas pelos encantos das pistas aeroportuárias by night, a compreender que está fora de questão qualquer reedição deste tipo de eventos.

Uma segurança complexa

É bem verdade que garantir a segurança destas refeições de elite é quase tão complexo como um concerto dos Rolling Stones. Primeiro, o encaminhamento dos convidados deve ser protegido pela polícia na Auto estrada A 1. O que significa vigiar atentamente uma centena de limusines que vão efectuar a ligação entre os grandes hotéis parisienses e o aeroporto. Uma missão confiada à Prefeitura da polícia de Paris.
Depois, a privatização da aerogare S3, onde vai ter lugar o jantar de gala, também não é coisa pouca. Habitualmente, só os passageiros com bilhete aí têm acesso, antes de embarcar nos respectivos vôos, dado tratar-se de uma zona já fora das fronteiras alfandegárias. Houve portanto necessidade de um despacho especial, par desclassificar precariamente o local, permitindo assim que os convivas possam entrar sem bilhete e sair sem ser pelo ar.
Apesar disso, os serviços de polícia não transigiram quanto à passagem pelo pórtico de inspecção e filtragem -PIF. Assim, como qualquer outro viajante, cada convidado terá de colocar o seu telemóvel no tapete rolante, tirar os sapatos, despir o smoking e desapertar o cinto, antes de passar pelo pórtico de segurança.
Antes que isso aconteça já os polícias terão obtido, pelo menos uma semana antes, a identidade completa de cada um dos hóspedes. "É absolutamente necessário que possamos efectuar um trabalho prévio de "crivagem", esclarece um responsável policial. Uma maneira educada de indicar que os polícias não gostariam de ver entrar na zona sensível alguém com um registo criminal mais longo, ou com uma ficha S [em França a ficha S indica alguém suspeito de poder vir a cometer actos de terrorismo]. Numa nota de serviço endereçada ao presidente da ADP, a que o Libération teve acesso, é lembrado que os seguranças dos VIP só poderão entrar sem armas. A coisa promete...

Só até à uma e meia da madrugada

Finalmente, para que toda esta nata social possa fazer as suas compras na galeria comercial da aerogare, a alfândega também foi forçada a  adaptar-se. Habitualmente, as compras fora de taxas nas lojas de luxo estão reservadas só para os passageiros que viajam para fora da Europa. Desta vez tornou-se portanto necessário imaginar um dispositivo engenhoso, o qual permite praticar o "fora de taxas" imediatamente, mas guardando  as compras, que só serão entregues aos seus donos aquando da partida para fora da Europa, nalguns casos muitos dias mais tarde.
Preocupados com o normal funcionamento do aeroporto, os polícias lembraram que estava fora de questão prolongar demasiado o evento. Assim, todos os convivas deverão ter abandonado o local até à uma e meia da madrugada, o mais tardar. A partir das 6 da manhã, o terminal E do aeroporto Charles De Gaule acorda para os voos da manhã. Pelo que, logo após a saída dos convidados de marca, começa uma operação de "descontaminação". Na linguagem típica da polícia, trata-se de verificar se não ficou por ali nenhum objecto suspeito. E fazendo votos ardentes para que não haja tão cedo mais eventos deste género."

Frank Bouaziz, Libération online, 14/FEV/17, 08H55

Tradução e adaptação de António Rebelo

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