quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Juro solenemente ter concluído o ensino básico com distinção

Mário Cobra

Prezados patrícios, estimadíssimos possíveis patrocinadores:
A cena seguinte ocorreu algures, no então chamado Ultramar. Já lá vão mais de quatro décadas. Veio ordem para mudar as chapinhas de alumínio, que cada um trazia ao pescoço, para quando... Iam ser substituídas por outras em inox. Nova folha de matrícula para cada militar. Companhia formada, começou o ritual: nome, filho de e de, nascido em, habilitações escolares. Sabe ler, escrever e contar em português, com correnteza?
O médico da companhia era natural de Goa – Índia portuguesa. Respondidos os quesitos essenciais disse, quanto às habilitações escolares, Formado em medicina pela Escola Médica de Goa. Sabe ler, escrever e contar em português, com correnteza, interrogou o primeiro sargento da Companhia. –Ó primeiro, com franqueza. Já disse que sou formado em medicina... -Não foi isso que eu perguntei, replicou o primeiro. Sabe ler, escrever e contar em português, com correnteza? Sim ou não? –Sim! –Então vamos ao seguinte. Nome...
Os tempos são agora outros, bem diferentes. Já não se fazem perguntas descabidas sobre os conhecimentos básicos, porque felizmente já praticamente todos sabem ler, escrever e contar em português, porém em muitos casos sem correnteza nenhuma. Vamos portanto a um suponha-se.
Suponha-se este vosso expedito servidor   não licenciado, indigitado para tomar posse como consultor governamental, autárquico, ou mesmo de uma qualquer tertúlia dos discriminados do tachito. Cerimónia de posse com pompa e circunstância, em manhã soalheira, pombos adejando pelos varandins, salão nobre engalanado com os seus melhores brocados e outros panejamentos, muitas flores, sobretudo cravos vermelhos e rosas idem, cadeiras repletas de familiares e amigos. Chega o momento tão aguardado: “Juro solenemente, pela minha honra, eu seja ceguinho, caia-me já aqui a placa dentária, o anjo da guarda seja meu avalista, se não concluí com distinção o ensino básico.".
Graças ao altíssimo, a nenhum dos presentes ocorreu repetir as velhas perguntas do primeiro da companhia, pelo que, perante as instituições, posso jurar pela alminha de um ouriço-cacheiro que nunca apresentarei licenciaturas falsas, nem que a vaca da má sorte tussa. E se tossir, deixá-la tossir. No meu tempo de ingresso na universidade, premonitório como convinha, mostrei-me interessado em matricular-me na licenciatura em subvenções vitalícias, a mais propícia a uma promissora carreira curtíssima. Assim tipo “queca” de coelho: -É tão bom, não foi? 
Para meu desgosto e desencanto, fui logo informado que, para aceder a essa licenciatura em subvenções vitalícias, só matriculando-me primeiro nos partidos políticos com acesso ao poder. Aí, na sede do partido mais a jeito, chutaram-me com a profecia “Muitos são os candidatos,  poucos os escolhidos. Vai aparecendo, que quem não aparece esquece.”


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Foto ilustrativa. Qualquer relação com o tema desta crónica será mera coincidência. Fortuita.

Sendo assim, assumindo-me desde já como não licenciado, não serei caçado, porque nem coelho nem rato, quando a administração pública submeter os indigitados para os cargos públicos ao teste das habilitações, na maquineta da verdade. Como fazem nas instituições bancárias, procurando detectar notas falsas, só que neste caso com o objectivo de evitar licenciaturas tão falsas como as empedernidas beatas da paróquia. Bem as conhecemos, suas fingidas!
Apraz-me ainda informar que me submeto, da melhor vontade, à obrigação institucional de entregar a minha declaração de rendimentos. Porque, se houver justiça, ainda tenho a receber e muito. E quanto ao meu património, resume-se a um carro velho, em idade de reforma, o qual só ainda circula porque não há outra hipótese. Tem de dar o litro até gripar. Entretanto, lá vai indo aos mecânicos e levando as afinações possíveis contra a gripe.
Caso, apesar de tudo, seja mesmo necessário apresentar uma licenciatura, naturalmente que não terei qualquer dificuldade em a obter, porque se adquirem com relativa facilidade, nos meandros da conveniência e da desfaçatez. Naquele processo bem conhecido como “Toma lá, dá cá”. Seja portanto como der mais jeito. Com canudo ou sem canudo, como se dizia noutros tempos. E se for necessário um doutoramento, posso apresentar desde já o da mula ruça. Só me falta a alimária, o chapéu de chuva e a carapuça, mas isso arranja-se em menos de um fósforo. Alimárias não faltam, guarda-chuvas também não, e carapuças andamos nós todos a enfiar há décadas.

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