sábado, 1 de outubro de 2016

Era uma vez numa aldeia lusitana



Era uma vez uma aldeia lusitana em acentuada decadência, cujos habitantes se tinham habituado durante séculos a viver sobretudo à custa do erário público. Eram quase todos funcionários, pensionistas ou aposentados. Os restantes eram descendentes subsídiodependentes. Do estado ou da respectiva família. Apesar de tão calamitosa situação, gostavam muito de protagonismo, a que chamavam penacho, em gíria local.
Vai daí, apesar de praticamente não terem sequer dinheiro disponível para dar esmola a um cego, organizavam de quando em quando um evento a que chamavam Festa grande. Dada a penúria reinante, tanto no que concerne a dinheiro como a ideias realistas, aliada à obstinada recusa em se adaptar aos tempos que corriam, eram os capatazes eleitos lá do sítio que assumiam antecipadamente os custos da realização dessa folgança comunitária. Isto apesar de gerirem transitoriamente e nem sempre com acerto uma entidade pública com um passivo da ordem dos 30 milhões de euros.
Procurando disfarçar tanto quanto possível o seu papel de vera organizadora da festança, a antes citada entidade -a capatazia (conjunto de capazes)- convocava sempre, através do capataz chefe e no ano anterior aos previsto para a festança, que era de 4 em 4, (pois o orçamento não dava para mais), um ajuntamento dito popular, onde iam por assim dizer sempre os mesmos. Uma vez ajuntados no salão nobre do palácio da aldeia, faziam de conta que  decidiam o que afinal já estava antes assente -a realização do folguedo. Logo depois. lançados os foguetes anunciadores da boa nova, procediam da mesma maneira, homologando a escolha antes efectuada pela capatazia que pré-indicara o indispensável organizador executivo, a que chamavam mordomo. O daí em diante subcapataz da folgança.
A última vez que houve festa foi em 2015, ano da geringonça em Lisboa e da geringoncinha em Tomar. Por essa altura, os cofres autárquicos estavam tão mal que o capataz chefe, dessa vez e por mero acaso uma capatázia, já prometia e anunciava subsídios vários, que depois tardava em pagar, por falta de verba, vulgo euros. E dos infelizes fornecedores, coitados, é melhor nem falar... Dado que o mordomo, decerto por simples obra do acaso, era o mesmo havia mais de uma década e até era funcionário da capatazia, o que dava muito jeito, porque assim nada cobrava pela liderança da festança, para ele uma espécie de forçada ocupação dos tempos livres, o longo percurso até ao cortejo e ao bodo começava com apenas o saldo da festa anterior. Que em 2015 fora de 16 mil euros... 
E assim se foi vivendo até que, 15 meses mais tarde, ao publicarem as contas do evento, um aposentado da aldeia, com um feitio bastante difícil, resolveu denunciar a estranha contabilidade. De acordo com as contas oficiais então vindas a público, a festança custara 365.425€ e gerara receitas várias de apenas 237.979€. Donde um défice ou prejuízo de 127.445€. Sem contar com toda uma série de custos não contabilizados: comunicações, combustíveis, meios de transporte, água, luz, aluguer de edifícios, ocupação de recintos, ocupação da via pública, mão de obra. etc.
Em ano anterior a eleições, a capatázia e seus acólitos, vendo que não podiam decentemente apresentar o óbvio, mais um buraco de quase 130 mil euros, resolveram o problema à boa maneira portuguesa. Ordenaram ao mordomo para acrescentar nas contas, a título de receita, 142 mil euros de subsídio teórico. Só para compor a coisa, que assim passava a apresentar um saldo positivo de 14.500 euros. Quanto a honrar esse subsídio e várias outras facturas da capatazia por pagar, os fornecedores que fossem esperando. Sentados, para evitar cansar-se.
Assim à distância de anos, só não se percebe o que terá impedido a capatázia da altura de dizer ao mordomo para acrescentar 192 mil euros, em vez dos 142 mil. Ficava um saldozito mais bonito e folgado para a festança seguinte e, como de qualquer forma não era para pagar no imediato, depois logo se veria. Mas até nisso eram pequeninos! Um saldo de 14 mil euros, para uma festança de 365 mil!
E teria sido afinal tão simples, sabe-se hoje, rever a organização da festança, sem trair a tradição e respeitando os naturais e os residentes da aldeia lusitana, porém de forma a pô-la a dar lucro. A imprensa  local já noticiou por diversas vezes que vieram à festa grande centenas de milhares de visitantes. Se não erro até já mencionou um milhão de forasteiros. Assim sendo, não é nada complicado fazer contas de merceeiro: 50 mil entradas para o grande cortejo, a 5 euros cada = 250 mil euros. 30 mil entradas para ver o conjunto das ruas populares ornamentadas, a 5 euros cada = 150 mil euros. E assim tínhamos a festança paga e até com algum lucro.. Sem peditório, sem patrocínios, sem subsídio da capatazia e contado apenas com 10% dos visitantes indicados pela comunicação social nabantina.
Mas quê! Ficava-se finalmente a saber quantos visitantes vêm mesmo à festa. Se 100 mil se um milhão, se bem menos. E libertava-se a capatazia para outras despesas, bem mais urgentes e úteis do que a festança. Porém e infelizmente, a experiência evidencia que  "Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré", dizem os brasileiros, lá da outra margem do Atlântico. Que também não estão lá grande coisa, é bem verdade.  Ou não fossem eles em grande parte descendentes de lusitanos. E como sentenciou o Lavoisier há já muitos anos "As mesmas causas, nas mesmas condições exteriores, produzem sempre os mesmos efeitos". Nefastos no caso presente.

anfrarebelo@gmail

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